Poesia





"Pelo Sonho é que vamos,  
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não frutos,
pelo Sonho é que vamos."


Sebastião da Gama

















 Às vezes ouço passar o vento;
 e só de ouvir o vento passar,
 vale a pena ter nascido.


Fernando Pessoa



TUDO É FOI

Fecho os olhos por instantes.
Abro os olhos novamente.
Neste abrir e fechar de olhos
já todo o mundo é diferente.

Já outro ar me rodeia;

outros lábios o respiram;
outros aléns se tingiram
de outro Sol que os incendeia.

Outras árvores se floriram;

outro vento as despenteia;
outras ondas invadiram
outros recantos de areia.

Momento, tempo esgotado,

fluidez sem transparência.
Presença, espectro da ausência,
cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria.

Corpo que a arder arrefece.
Incandescência sombria.
Tudo é foi. Nada acontece 

António Gedeão







Vidro Côncavo


Tenho sofrido poesia

como quem anda no mar.

Um enjoo.

Uma agonia.

Saber a sal.

Maresia

Vidro côncavo a boiar

Dói esta corda vibrante

A corda que o barco prende

à fria argola do cais

Se uma onda que a levante

vem logo outra que a distende.

Não tem descanso jamais.
 


  António Gedeão





Viagem



Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro.

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar...

(Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso
Procurar

O velho paraíso

Que perdemos).

Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida.

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.


António Gedeão

 

 COLEGIAL




Em cima da minha mesa,
Da minha mesa de estudo,
Mesa da minha tristeza
Em que, de noite e de dia,
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo...)
E me estudo,
A mim,
Também,
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!
À cabeceira do leito,
Dentro dum lindo caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora...
Ai minha Nossa Senhora
Que se parece contigo,
E que tem, ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que tenho,
De menino pequenino...!
No fundo da minha sala,
Mesmo lá no fundo, a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(Que as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós...)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa...
Três maços - e nada leves! -
Atados com um retrós...
Se não fora eu ter-te assim
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(Sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta...)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido

Algum tinteiro de tinta!

JOSÉ RÉGIO



O Poema Original


 Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos    quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.
 

ARY DOS SANTOS



Sem comentários:

Enviar um comentário