Contos
























       Durante os dias que ainda faltavam
       tentou organizar o itinerário
       para não se esquecer de nenhum 
      dos lugares que gostaria de rever.
      Quando decidira o destino desta 
      viagem sentira muita curiosidade  
      “como se iria sentir ao voltar aquelas paragens?”.


      Enquanto escolhia o que levar na
      bagagem relembrava amigos que 
      por lá tinham ficado.
      Poucas notícias tinham trocado. 
      Na época não havia nem computador nem redes  sociais.
      A vida era complicada para todos,
      pouco tempo,
      muita distância.
       A lembrança desses tempos perdera-se no passar dos anos.


     O dia da partida chegou por fim.
     Muita azáfama, não  esquecer isto,
     não  esquecer aquilo, na hora de fechar a mala surge sempre
     aquela insegurança, será  que não  
     foi esquecida alguma coisa realmente importante (?). 
     -Não  interessa, viajar  é  assim mesmo. 
     Se faltar alguma  coisa logo  se resolve, exclamou.
     Perante tanta preocupação  alguém  comentou 
     -Parece que vais para o fim do mundo?!
     Não,  realmente não ia viajar  para o  fim do mundo,
     não  em distância. Seriam  apenas algumas  horas  de  viagem.
     Muito diferente  do tempo que tinha durado a que fizera há  trinta 
     e tais  anos atrás. 
    Essa tinha sido uma viagem lenta e interminável.
    Durante uma longa noite fora embalada pelos solavancos 
    de um comboio  velho e cansado. Quando clareou o dia  paisagem   
    mudara  completamente. 
    Então o comboio parecia andar ainda mais devagar. 
    Serpenteava nas curvas do rio, tentando chegar ao seu destino
   sem molhar os pés e  corria mais ligeiro quando tentava alcançar 
   uma cidade mais importante.
Quando chegou ao  seu destino  tudo 
estava longe, o seu mundo, a  sua identidade, 
os seus familiares, estava só, 
em todos os sentidos.  
Por lá  ficou  quase um ano. 
Foi tempo de  conhecer um pouco aquela região. 
Então, nos fins-de -semana em que 
era impossível vir a casa,qual vagabundo
 errante,  dormia em casa de um, 
                                                    em casa de outro. 


Os colegas, com quem tinha
 maior afinidade, tentavam assim oferecer
 tudo o que de bom tinham por aquelas bandas, paisagens, conforto e amizade.  
 Assim aprendeu a apreciar sabores 
 e cheiros diferentes, a compreender
 o significado de palavras desconhecidas 
até aí, usos e costumes, hábitos 
 e comportamentos  completamente inusitados. 
    O espanto fora grande quando a neve caiu
    pela primeira vez nesse ano.
      Os alunos logo que se aperceberam saíram para fora
    da sala de aula, sem pedir autorização, numa correria e alegria
    que dava gosto ver.
    O frio, a neve, os caminhos tortuosos, a  falta de meios,
    o trabalho no campo, em que todos os elementos da família                 participavam sem excepção, ditavam as suas leis.
  De tudo isso, dependia o número de  alunos que se 
  sentavam na sala de aula, a sua higiene,  a sua alimentação 
  e até a atenção  que prestavam às  matérias.  
  Como era diferente, naqueles tempos, a realidade daquelas crianças 
  naquela região  transmontana! 
  Agora iria revisitar  aqueles lugares. Nesta altura do ano os montes
  seriam cor de cobre   em contraste com o azul do rio, como deve ser
  em tempo de calor e de vindimas. 
  Também  assim fora da primeira vez.
  E dessa vez sim, tinha sido mesmo uma viagem para o fim do mundo!













Naquele dia de Inverno, após a missa, estive a observar mais um casamento. Ficava junto à minha avó.
 Não tinha permissão para me afastar, nem sequer para me aproximar um pouco mais, só para ver de perto o vestido da noiva.
Impossível resistir ao fascínio de uma noiva… pensava eu.
Mas não, teria que ver de longe. Por esse motivo, sempre que havia um casamento, passei a prestar mais atenção à cena no seu todo, e constatei que no dia do casamento todos estavam felizes. Não interessava se chovia ou fazia sol.
Todos os convidados vinham bonitos nos seus vestidos de festa e tinham no rosto um ar feliz. Os pais dos noivos porque os filhos iam constituir família, viriam por fim os netos. Os noivos porque era o dia mais importante das suas vidas, diziam um ao outro e também a alguns dos convidados mais íntimos, e os convidados também partilhavam dessa felicidade porque, na qualidade de amigos, os seus votos eram de que fossem felizes para sempre.
Tempos mais tarde, voltei a encontrar os já não noivos e, reparei que a família tinha crescido e que conservavam o mesmo olhar para o seu par, o olhar do dia do casamento.
E continuaram felizes quando nasceu o primeiro filho e mais felizes ainda quando nasceu o segundo.
Mas... também aquele casal foi sofrendo a erosão da vida.
As diferenças surgiram ao longo do tempo, com o passar dos anos…também foi ao longo do tempo que eles se conheceram melhor e perceberam que iria ser uma tarefa árdua cumprir o que tinham prometido, no tal dia em que tudo parecera perfeito.
Ainda assim, apesar de alguns contratempos, de frustrações e revezes da vida, sempre foi possível encontrar pontos de união e manter de pé a sua ligação.
Eram uma família feliz, pensavam todos, pelo menos era o que aparentavam sempre que me cruzava com eles.
Vimos crescer as crianças sem grandes sobressaltos, cuidados pela mãe, protegidos pela mãe, castigados pela mãe, acompanhados pela mãe nas tarefas escolares e pelo pai nos tempos de lazer… eram mesmo uma família feliz!?
Como dizia a minha avó, tudo estava bem. Tinham boa saúde, poucas preocupações com os empregos. O resto… o tempo haveria de consertar.
Nunca compreendia a que resto ela se referia… coisas de avó!
Mas, algum tempo depois, percebi que muitas vezes, o tempo concerta a vida de modo diferente para cada um dos seus membros. Para os avós, a vida devia continuar como sempre parecia ter sido, uma família completa aos olhos dos demais. Para os filhos não é muito importante o que o pai ou a mãe pensam sobre como se sentem. O importante para eles é a sua vida, que se apresenta tão complexa, tão confusa, tão difícil como é difícil o aprender de todas as coisas. Estão, eles prosseguem a sua aprendizagem iguais aos passarinhos que saem dos ninhos para aprender a voar, sem se deterem a olhar para quem os alimenta, sabendo que quando voltarem eles vão estar lá.
E esses dois irmãos voltavam nas férias de Natal, nas férias da Páscoa e durante o Verão, depois dos exames. Era frequente vê-los nos seus passeios com os amigos. A sua família estava bem mais reduzida, repararam todos na vizinhança.
Depois de aprender a voar os dois irmãos ganharam famílias novas. Também para os seus pais foi tempo de mudança, tempo de aprender a voar de outro modo, procurando sempre fazer parte de uma família feliz.
Deixei de observar aquela família, porque já não vou à missa, porque já pouco reparo no que se passa fora das minhas vidraças. Agora observo o que se passa mais perto, para não precisar de procurar os meus óculos que teimam em andar sempre longe do meu alcance. E, mesmo sem eles, eu reparo que agora as escolhas e o modo como cada um prefere viver se sobrepõe, muitas vezes, ao interesse do grupo, da família ... será que não foi sempre assim?
As tarefas continuam mal distribuídas...por vezes há uma tentativa colectiva de reorganização, mas ninguém lhe presta uma atenção exagerada.. Já passou o tempo em que espaços, horas e compromissos eram ditaduras de mãe e exigências de pai.
Agora cada membro da família parece seguir um caminho.
É verdade que por vezes esses rumos parecem coincidir e aí voltam a ter a aparência de uma família feliz, por algum tempo. Os que gostavam que a aparência fosse essencial já não fazem parte do grupo que emite opiniões. A aparência das coisas foi substituída pela sua essência, acreditam alguns, duvidam outros. E ainda assim, os membros destas novas famílias continuam a sentir-se menos bem, frustrados e desiludidos.
 A vida continua a dificultar uma convivência harmoniosa e feliz entre os membros de uma qualquer família. E o tempo, ao contrário do que pensava a minha avó, parece muito curto para poder concertar as coisas.
Novembro 2016







Chegava da escola a meio da tarde e logo que acabava os meus deveres de casa, tapava a fome com uma fatia de pão com marmelada, e sem perder muito tempo em explicações à minha mãe sobre o que tinha feito na escola, o que eu mais queria fazer era ir saltar à corda. Tinha a companhia de uma rapariga da minha idade que partilhava o mesmo entusiasmo, e sempre que tínhamos permissão, essa era a nossa brincadeira preferida. Sabíamos todos os jogos e maneiras de saltar. Como nos divertíamos! O melhor era pudermos brincar sem os adultos por perto. A rua era para nós um espaço imenso. 

 Em minha casa os meus pais andavam ansiosos e preocupados porque um bebé vinha a caminho. 
O meu irmão, ou irmã (naquele tempo ninguém sabia o que seria nada antes da hora) iria nascer em casa da minha avó. Era uma empreitada muito grande para a minha mãe encarar sozinha. Teríamos que fazer essa viagem o quanto antes. 
 Embora viajar de comboio fosse agradável, para mim essa viagem era muito longa, interminável. Ficava incomodada por estar, todo aquele tempo, sentada no mesmo lugar, sem me poder mexer muito. Se tivesse a sorte de ficar sentada num lugar junto à janela, aí sim, poderia ir vendo tudo o que passava numa correria desenfreada perante os meus olhos, como se casas, árvores, montes e vales estivessem atrasados para algum evento e nada os pudesse parar.
 Eram as oliveiras com cabeça de frade… Eu imaginava que por estas árvores só terem ramos nos lados, e na copa se apresentarem desprovidas de folhagem, se assemelhavam a uma cabeça já careca. Não sabia ainda que se defendiam deste modo do sol do Alentejo. 
Os sobreiros, para mim, eram os mais engraçados. Eram árvores de calça arregaçada. Mostravam as pernas nuas por lhes terem” roubado” a cortiça e assim, desse modo, lembravam alguém que se estaria a preparar para ir até à praia apanhar qualquer espécie de bivalve.
 Depois a paisagem mudava e apercebia-me que estávamos quase a chegar. As árvores mudavam o seu modo de vestir. Havia umas que tinham roupa que se arrastava pelo chão, trajavam de um verde intenso e, em algumas épocas, usavam muitos botões, que eram os figos, pequenos e rijos. Outras vestiam de branco e rosa, enfeitavam-se de flores como se fossem a uma festa, eram as minhas preferidas. 
Ainda havia uma espécie de árvores pequenas, que eu não percebia se o motivo era a sua idade, ou a sua condição. Estranhava vê-las, muito juntas, alinhadas como numa parada. Todas elas vestidas de bela folhagem e recheadas de frutos de muitas bagas e cores variadas, todas juntas tinham um nome só – vinha. Porquê? Não merecia cada uma ter o seu próprio nome? 
O movimento cadenciado do comboio embalava a minha imaginação e permitia ao sono vencer o meu cansaço.
Porém, antes de vir para a casa da minha avó ainda havia algo que me preocupava.
O primeiro ano, a minha “ primeira classe”, estava a terminar e havia que fazer uma prova de passagem para a segunda classe. Eu teria que a fazer antes dos outros alunos para poder viajar. Estava um pouco assustada. Sabia que iria ter lugar numa outra escola, com professores que eu não conhecia, com outros colegas também desconhecidos. Como iria ser? Quando pensava nesse dia, que se aproximava cada vez mais, o meu coração disparava… como se estivesse a saltar à corda. 
E ainda havia o vestido que eu iria usar. A ocasião merecia um vestido novo. Era a minha mãe que fazia a minha roupa. Eu gostava de ver como cortava aqueles tecidos e fazia peças de roupa tão bonitas. Eu adorava saias rodadas, de pregas. Tudo o que emprestasse movimento às minhas brincadeiras. Mas ainda não tinha visto o vestido, que iria usar naquele dia, e que seria especial. Decidi que iria descobrir a cor desse vestido que a minha mãe andava a fazer, já havia algum tempo, e que ainda não me tinha mostrado. Logo que surgiu a oportunidade fui observar.
Então descobri que o vestido que tanta curiosidade despertara era, afinal, uma linda saia branca de alças  e uma blusa de um amarelo tão intenso e radioso que, ainda hoje, ilumina a memória a desse dia.
 O dia em que “passei” para a segunda classe. 

Lagos, Outubro 2016 


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